Mar leve que leva Mara

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Mar a diante

Azul tecido com brancas ondas

Mara, marrom vestida com amarelo

Mirava as ondas, tão lindas ondas,

E em seu pensar, sonhou inteira, com o leve mar.

Perdia o tempo, ganhava o vento, nos seus cabelos, dançava o mar.

Seus pés molhavam, se desenhavam

Nas doces ondas de um leve mar.

De um mar que a leve

No seu perfume, no seu cantar

Catando as ondas de branca espuma,

Beijando os dedos levando os medos

Sonhando a vida no mar tão leve,

Do vento doce da brisa leve

Que então a leve cantando o mar.

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Hipo

Toda segunda-feira era igual. Reunião de oração na sala dos diáconos, sempre às 07:00 em ponto. Irmã Lurdes nunca se atrasava. Com a Bíblia na mão às 07:02 a pergunta: Posso começar? E não esperava a resposta. Vamos abrir nossas Bíblias… E disparava livro, capítulo e versículo, quem era rápido acompanhava e lia. Depois, levava uma palavrinha, como ela mesma gostava de dizer. Aproximadamente 45 minutos. Terminada a “palavrinha”, ela abria para orações, pedidos, agradecimentos e o que mais e quem mais quisesse.

O primeiro a falar foi o irmão Gustavo.

– Eu queria agradecer a Deus por que ontem eu consegui dar entrada num carro novo. Esse carro vai ser uma benção, eu vou poder abençoar muitas pessoas.

Todos deram glória a Deus e o irmão Gustavo quase chorou.

Depois foi a irmã Patrícia.

– Eu quero dar um testemunho. Ontem eu preguei para uma amiga do meu trabalho. Ela é uma desviada. Eu nem gosto de falar no que ela crê. Mas eu consegui falar de Jesus para ela. Eu fiquei muito feliz.

Novamente uma série de améns e glórias a Deus que quase culminaram em aplausos.

E assim foi. Os irmãozinhos orando, dando seus testemunhos… E quando já estavam quase dando por encerrada a reunião, um jovem levantou a mão e perguntou. Eu posso pedir uma oração?

Irmã Lurdes estranhou. Quem era aquele? Tinha visto muito pouco na igreja. Lembrava dele sem querer.

– Claro que pode… ééé…

– Manuel, meu nome é Manuel.

– É rápido, não é Manuel?

– É, vai ser rápido sim. – Eu tenho um problema e queria pedir para os irmãos para orarem por mim. Eu sou viciado em pornografia.

Fez-se um silêncio. As palavras de Manuel eram como um vômito enorme no meio da sala. Como se alguém despejasse um lixo, há muito apodrecido, no meio de uma loja de perfumes. E ele continuou.

– Eu tenho pensamentos sexuais com muitas mulheres, e até com homens, e não são desejos normais, são perversos, quero chicoteá-los, maltratar a todos, minha mente me leva para lugares horríveis. Eu sei que Deus detesta isso. Eu me masturbo muito, muitas vezes ao dia. Eu preciso parar. Ontem eu tive vontade de roubar vinte reais. Eu vi um menino comprando um doce e pensei como seria fácil tomar da mão dele.

Todos estavam estupefatos. Podiam jurar que da boca de Manuel saía um líquido esverdeado e seu rosto se distorceu e ficou cheio de rugas e feridas e tinha um cheiro de podridão que se espalhava pelo ar e causava náuseas.

Lurdes com os olhos arregalados olhava para o nada, não conseguia encarar ninguém. A maioria estava sem saber o que fazer. Até que seu Pedro soltou um sonoro “Obrigado”.

– Obrigado, Manuel, por sua coragem. Eu vou te ajudar, vou dizer a minha verdade. Eu devia estar na prisão, tanto que eu já fraudei as minhas notas fiscais, todo o dinheiro que tenho, gasg, gasg, arghhhhttt. – Seu Pedro não conseguia mais falar, seus dentes começaram a crescer ele sentiu uma enorme aflição, levou as mãos para trás da cabeça e com um grito ele arrancou o próprio rosto. Pelo menos essa foi a impressão que todos tiveram, mas não, o rosto de seu Pedro estava lá, amassado, disforme, com dentes grandes e tortos, os lábios roxos e babando. – Assim eu consigo falar. Todo o dinheiro que eu tenho eu deveria devolver aos meus clientes, pelo menos a maioria. Eu já traí a minha esposa e nem me importo. É bom poder respirar sem isso.

Dona Matilde levantou a mão. – Eu tenho desejos pelo meu vizinho e inveja da mulher dele. – E com um grito sua cara caiu. Dona Matilde tinha feridas pela pele e delas escorriam um pus rosado, muito fedorento, com pelos grossos por todo o rosto e seu nariz era torto e todo enrugado. – Eu não suporto metade das pessoas dessa igreja, de algumas tenho nojo e nem sei porque. Odeio os pobres, os negros, os índios, os mulatos, toda essa gentinha que enche o nosso país. Ai, como é bom tirar essa falsidade e poder falar tudo isso.

E assim foi, um após outro, deixando cair a mentira, se mostrando, monstros horríveis, pessoas com áreas secretas no coração.

Todos falavam e sorriam, a reunião começou a parecer uma festa. Todos tinham tirado um peso da alma, estavam alegres, se sentiam melhores.

Manuel propôs uma oração. Todos deram as mãos e ficaram em um circulo. – Senhor que o mundo saiba quem somos, que nenhum de nós use máscaras, que sejamos as criaturas as quais o Senhor planejou. Ajuda-nos a sermos livres do pecado, a confessar a ti nossa dor e o peso dessa luta. Que nossa máscara caia e não volte, e que estejamos a seus pés, assim como somos, para que o Senhor nos transforme, nos cure e nos dê a eternidade da verdade e do céu.

Dona Lurdes olhou para Manuel e todos se olharam. A reunião tinha acabado. Um silêncio reinou. Dona Lurdes se abaixou, olhou fixamente para a máscara, colocou-a sobre o rosto facilmente, e todos, depois dela, fizeram o mesmo, menos Manuel. Esse decidiu sair como estava e era como se o Próprio Jesus Cristo tivesse feito um carinho em seu rosto terrível, sujo e amargo, mas que já começava a se curar.

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Na Lapela

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Aqui sempre faz muito calor. Quase nunca chove, é sempre quente, sempre seco, árido e vazio. Quase nunca se vê água. O que me faz forte. Obriga-me a criar raízes poderosas nesta terra seca, terra dura. Nada! Quase nada, se tira dela, assim como alguns corações. É preciso ir fundo, cavoucar profundamente para encontrar, se encontrar, alguma coisa que me ajude. Um pouco de umidade, uma substância boa que me dê forças.

Às vezes venta e é bom, mas às vezes o vento é quente e cheio de uma areia seca. E sempre esse sol. Sol que não descansa. Sol que não pisca. Sol que tanto me ama. Sol que quase me mata. Sol que me mantém viva. Sol que me castiga e, à noite, me abandona, me deixa no frio. Como faz frio à noite! Frio pior que o sol.

Como eu ainda resisto? Por quê?

Da última vez que choveu, não foi bom. Choveu muito e essa terra dura não absorveu tudo. Eu quase me afoguei. Fiquei encharcada. Não fosse o sol – esse sol – acho que eu teria morrido. Sempre aqui. Sempre só. Bem que por aqui podiam passar pessoas. Uma criança, seria lindo. Ela me acharia linda. Talvez até me levasse com ela. Não me importaria morrer assim, nas mãos de uma criança. Ou servir de agrado, um gesto simples e doce. Passar de uma mão para outra, ver dentes, lábios se abrindo, palavras bonitas, eu te amo, eu te quero, quem sabe até poesia, rimas, canções…

Sinto falta dos insetos. Amo os insetos. Minhas cores são para eles. Mas aqui, fico dias, semanas sem vê-los. Uma pena. Às vezes sonho com abelhas, que falta me fazem as abelhas! E os pássaros então? De alguns tenho medo, mas os pássaros me fazem bem. Gosto dos pequenos e rápidos; são tão carinhosos, me beijam tanto, mas são raros por aqui. Eu só vejo os grandes que passam longe, nem sabem que eu existo. Quem sabe que eu existo?

Eu nascer aqui já foi um milagre. Milagre eu ainda estar viva, suportar isso tudo. Eu sei que existe um lugar melhor, eu sinto. Onde fica esse lugar? Um lugar de brisa fresca, de terra escura, úmida, terra cheia de nutrientes, terra com minhocas, terra cheirosa. Um lugar onde se aviste, por todos os lados, o verde, se sintam cheiros, ervas, perfumes, a grama forte me protegendo, um lugar cheio de cores. Um lugar que sempre chove, chuva boa, e o sol – esse sol – que é tão firme. E, quando tudo estiver quente, vem uma brisa fresca e então cai uma garoa e eu lentamente fico úmida, de leve, como o orvalho. Ah, o orvalho! Que lindo deve ser acordar com o orvalho. Que lindo deve ser esse lugar. Será que existe um lugar assim? Será que pode existir um lugar melhor que esse? Melhor lugar para se estar? Melhor lugar para sonhar viver?

Uma nuvem!? Que bom! Um descanso. Chuva!? Chuva. Meu Deus, meu Criador… Um respiro, um alento. Um homem? Vem até mim. Sandálias gastas. Meu Deus! Meu Deus! É Ele. Meu Deus! Meu Criador! É Ele? Ele se abaixa. Senhor! Ele me vê, me cheira, me toca. As suas mãos estão feridas, suas duas mãos estão feridas. Seus pés também estão feridos. Meu Pai! Ele me agarra, me arranca dessa terra seca, que não me segura, essa terra não pode me deter, nunca pôde. Ele me ajeita em sua roupa, e me prende nela. Sim há um lugar melhor. E eu fico por toda a eternidade.

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Idruk Nalya

trevas

O mar foi profanado.

As ondas cessaram.

Não há mais marola.

Não há mais espuma.

As marés não existem mais.

A água está amarga e venenosa como a lágrima.

Na praia não há vento nem calor, só o espanto.

Nunca mais risos de crianças brincando na areia; a areia agora é mármore frio.

Nunca mais a brisa.

Nunca mais o pôr do sol.

Jamais o amanhecer.

Tudo morto…

Tudo largado…

Estirado na desolação e no assombro.

NADA nunca mais virá do mar.

A esperança morreu.

O amor fracassou.

E nem o fim nos basta mais.

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Manezinho

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Todos os dias, ele buscava algo. Não sabia o que era, mas não desistia. Pensou que fosse o amor. Quando o encontrou, viu que não era. Depois acreditou que o que lhe faltava era descobrir o significado da vida, teve filhos e o significado da vida não teve mais tanta importância assim.

Então, num acaso ele perdeu a sua família, foi roubado, traído, abandonado e esquecido e decidiu pôr a culpa em Deus. Um Deus do qual ele nunca cobrou nada.

Num dia frio, ele olhou para o céu. Deus, por quê? Deus, o Senhor me vê, me ouve, sabe que eu existo? Eu estou cansado, perdido, morto de tudo…. Eu vejo os seus filhos te adorando e nunca entendi. Por que tanta devoção se o Senhor quase não os ouve? Se nem sempre a tal paz chega, se nem sempre o milagre acontece. Deixe-me entender essa fé. Deixe-me provar desse amor.

Solano vivia nas ruas depois que foi vendido e entregue por seu “amigo” à polícia. Preso por algo que ele não fez. Acusado de uma mentira suja, mas que o pegou e que o levou ao fim. Ter perdido a família inteira num acidente já o havia destruído, mesmo assim todos acharam que ele era o pior, e o pior é que nada fazia sentido. Na prisão, leu o livro de Jó. Como acreditar no diabo se ele não conhecia Deus? Como perdoar um Deus que lhe tira tudo e o deixa assim, um trapo solto na sarjeta, alimentando-se do pouco que sobra das migalhas? As palavras carinho, paz, amor, perdão, alegria não eram mais entendidas, um estrangeiro analfabeto perdido num livro onde não há figuras.

Numa tarde, Solano se protegia da chuva na marquise de uma igreja. Quando a água bateu em seu rosto ele gritou “Meu Deus”. E um cão veio lamber seu rosto, e ele amou aquele cão, pois há muito tempo ele não sentia o calor de uma criatura. “Obrigado, eu bem que precisava de um carinho”. E fez uma carícia nos pelos machucados do cão, que foi ficando perto, que foi ficando com ele, que foi ficando nele, colado, misturado, amando Solano com o calor do corpo, com os poucos pelos, dividindo a fome e a dor da existência. Sendo um para o outro o que o outro lhe bastava. Solano dividia o pouco de comida que ganhava com o cão. E o cão lhe trazia o que conseguia.

Numa noite o cão se distanciou, ficou minutos longe de Solano, muitos minutos. A preocupação fez o coração apertar, não era possível perder tudo novamente. Lembrou-se de Deus e repetiu as palavras que disse quando o cão apareceu, “Meu Deus”, como se elas fossem palavras mágicas, mas o cão não apareceu. Solano passou a noite preocupado. Tentou dormir, mas não foi possível. Solano pensou em se matar. Só então ele orou:

– Senhor por que é que eu tenho que ser Jó? Já não basta tudo o que eu passei, tenho que conviver com essa dor, tenho que suportar além do que eu não posso; desejar a morte quase todo dia, cansado, doente…? Senhor traz de volta o meu cachorro. Traz de volta o meu amigo.

Mas naquela noite nada aconteceu, nem na outra. Solano quase se matou.

Numa noite fria, algumas pessoas vieram lhe trazer sopa quente. Ele comia sem dizer uma única palavra. De dentro de um carro, ele viu um cachorro. Ele se levantou e o cão latiu balançando o rabo com aflição. Solano gritou:

– Amigão é você? É você! Está tão bonito!

A porta foi aberta e o cão fez a maior festa.

– Nossa como você está cheiroso. Cuidaram bem de você, não foi?

Os dois não se contiveram, choraram abraçados Solano e o cão.

Uma garotinha saiu do carro.

– Moço, esse cachorro é meu. Pegamos ele na rua e cuidamos dele.

Solano a olhou sério. Olhou para o cachorro e chorou.

– Tá certo. É melhor ele ir com você. A rua não é vida pra ninguém, pra nada. Só os ratos e as baratas gostam da rua.  – As lágrimas escorrendo dos olhos. A garotinha chorou e quem estava perto chorou também.

– Vai com eles Manezinho. Vai com eles que é melhor. – E foi para debaixo da marquise, o cão foi atrás e sentou ao lado dele, feliz da vida. A garotinha olhou para mãe, a mãe se abaixou falou ao seu ouvido e se foram.

Horas depois, outro carro volta. Um senhor tenta conversar com Solano, que explica que o cão que quis ficar. Solano, relutante, nem ouvia direito. O cão latiu e só assim ele prestou atenção no homem.

– Você tem toda razão, Solano, a rua não é lugar para ninguém. Venha comigo que eu posso te arrumar uma casa e até um trabalho.

Solano olhou desconfiado.

– E o Manezinho?

– Ele é a sua família, não é?

Solano olhou para o cão que lhe lambeu o rosto.

– Só tenho ele.

– Então… Bora pra casa, Solano.

Solano riu e chorou e entrou no carro.

– Qual o seu nome moço?

– Meu nome é Macarrão

– E o que você faz?

– Eu só faço o que Deus me manda fazer.

-Deus mandou você me buscar?

– Mandou, você e o seu cachorro.

E Solano creu em Deus, num Deus que ele ainda não conhecia.

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Cinzas

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Então eu vi queimar, tudo virou cinzas que o vento levou tão linda e docemente. Tudo queimado até o final, do entardecer ao nascer do outro dia. Mas nada havia acabado. Nem a dor, nem a esperança. A casa, aquela que testemunhou todo o meu tormento, queimou; virou cinzas e foi levada pelo vento.

Então eu parti, depois que o último grão de areia ficou livre da última cinza. Nada mais havia ali pra mim. Dei as costas aquele espaço vazio e fúnebre. Deixei algumas lágrimas tolas rolarem, elas nunca me ajudaram em nada, só me denunciavam.

Depois de dias na estrada, sem água e nem comida eu desejei comer as cinzas, mas o sol esquentava a minha carne até que eu secasse, até que eu morresse. Mas sou feito de pedra e gelo. Sou coberto de pó e angústia.

Sou o deserto.

Não morro como as flores. Morro como as pedras.

Comi a chuva e bebi o vento, e a areia me acariciando os cabelos me consolou. Fez parte de mim a terra. Escura e azeda, vital. Numa caverna deitei por uma noite e acordei mil anos depois.

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A Coroa do Rei

coroa de espinhos

Era uma fila longa. As pessoas conversavam felizes: “A minha, eu acho, vai estar cravejada de diamantes” – “A minha vai ser reluzente, de puro ouro” – “Se a minha for de prata, não acho ruim, desde de que tenha uns rubis, umas safiras e até umas esmeraldas encravadas… Vai ficar linda”. E assim a fila foi diminuindo. Algumas pessoas estavam tão impacientes que eu as deixei passar a minha frente. Eu não tinha mais pressa, o tempo já não fazia mais sentido. Um a um, recebiam sua coroa, abraçavam o Senhor, choravam, comemoravam como um gol de bicicleta no último minuto da prorrogação da final da copa do mundo. Eu reparei como as coroas eram lindas. Uma senhora recebeu uma enorme. Um senhor uma tão grande que ele de inicio se curvou, mas depois se ajeitou e seguiu.

Quando dei por mim era o último da fila. E então chegou a minha vez.

– Meu filho, vem, entra no reino que eu te preparei. Mas, não tenho mais coroas como aquelas. A sua é diferente.

Ele então trouxe uma coroa feita de espinhos, pequena, seca, recurvada em seus próprios ramos, como “aquela”. Olhei fixamente para a minha coroa, ela dava medo. Olhei de volta para o Senhor, que sorria pra mim. Sorri de volta e perguntei: “Vai doer”. Meu Senhor fez uma careta de repreensão e me disse: “Olhe onde você está.” Eu só pude dizer: “Obrigado Senhor pela minha coroa”. Ele a ergueu e com carinho a colocou na minha cabeça, senti uma sensação muito boa, mas tive a impressão que escorreu sangue, passei a mão e nada, não tinha sangue. Com as mãos pude sentir os espinhos, pontudos, afiados, encravados na minha pele. Eu senti uma leveza, uma felicidade, algo que é impossível explicar. E eu abracei o Senhor e chorei e corri e dei pulos como se defendesse um pênalti no último minuto da prorrogação da final da copa do mundo. Meu Senhor dava risada, satisfeito, tão feliz quanto eu estava.

Eu comecei a andar, passear pelos jardins, percebi que os outros me olhavam e reparavam minha coroa.

Logo eu comecei a sentir um perfume maravilhoso e algumas pessoas começaram a me seguir, estranho, mas o perfume vinha da minha coroa. Levei as mãos esperando tocar os espinhos, mas eles não existiam mais, no lugar deles nasceram flores, e eu de leve as acariciava, todos queriam tocá-la, queriam sentir o perfume. Alguns largaram suas coroas de ouro e correram pedir ao Senhor uma como aquela. E então, todos tinham a sua coroa de espinhos, que floria e exalava o perfume do Nosso Senhor Jesus Cristo.

Rêmulo Vaney Carrozzi.

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José que toca o céu

José estendeu a mão ao céu. Pensou que podia alcançar as nuvens. José não era louco. José sonhava que era um gigante. Engraçado era quando José fechava os olhos e suas mãos chegavam até o céu. Mas ele não via. Quando José virava um gigante, tinha medo. Era um gigante medroso. Tinha medo de machucar os pequenos, mas gostava de ser um gigante, um gigante legal. Que fazia amizades com dragões. Os dragões são legais, é só não ficar na frente deles quando eles espirram. Quando José era gigante, ele podia conversar com o vento e não gostava quando o vento ficava bravo. O vento bravo derrubava as árvores. José gostava das árvores, especialmente as que davam frutas. José adora frutas, mas só quando não é gigante, assim elas duram mais.

Mas quando José tocava o céu nunca abria os olhos, por que no momento que abria os olhos, estava de volta na terra, pequenino, frágil.

Esqueci de dizer, José é só um menino, mas não é um menino qualquer. É um menino que toca o céu.

Todos os meninos podem tocar o céu, é só saber fechar os olhos, mas fechar do jeito certo, fechar as pálpebras e abrir a alma.

Um dia, José quis ser um pássaro, desses que voam longe, bem longe, longe mesmo. Então fechou os olhos e ficou superamigo do vento. Ele só abria as asas e deixava o vento levá-lo. Eu falei que José era leve? José era uma pena, mas não tenha pena, pois o vento era muito amigo dele e cuidava dele, nada de ruim acontecia, pois José sabia fechar os olhos.

O tempo passou e José cresceu, perdeu a mania de fechar os olhos, andava muito tempo com os olhos bem abertos. E com o tempo, o dragão e o vento sentiram tremenda falta de José.

Numa noite, o vento e o dragão resolveram que iriam matar a saudade do José e foram até o sonho dele pra fazer uma visita. E José sonhou que era um gigante novamente, conversou um longo tempo com o vento, brincou de esconde-esconde com o dragão. O dragão sempre o achava, dragões têm excelente vista além de voar, é claro, mas José não se importava. Era divertido esconder-se e ter que achar um dragão. E, na hora de acordar, foi uma hora triste. Ele chorou, não queria mais ser adulto, um adulto que não sabia mais fechar os olhos. Um adulto  bem bobão.

Naquele dia, no dia do sonho, José fechou os olhos e trombou com o chefe dele, que perguntou que se ele estava passando bem. José respondeu que estava sim. E foi trabalhar, na mesa dele. José tinha uma mesa, mas era uma mesa boba, tinha só uma gaveta e nela só tinha papéis.

Um dia José achou nela o desenho de um dragão, um dragão que era carregado pelo vento. Ficou pensando: “quem será que desenhou isso?”, não lembrou de nada. Só foi lembrar quando fechou os olhos.

Ele desenhou quando sonhava.

José hoje fecha os olhos toda hora, saiu do emprego e ganha a vida desenhando dragões, o vento, as frutas, os pássaros e tudo o mais que ele vê quando fecha os olhos.

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A Caveira e a Rã

caveira e rã

Às vezes,

sou levado de volta lá,

sinto o sol bater firme na minha cara;

a garganta ficar seca daquele deserto amarelo.

A cidade dourada de antigas pedras que desenham torres de catedrais.

E o peso do mundo no meu peito num caminho de contrição e ânsia de vômito que nunca acabará.

Sempre o retorno ao que não foi.

Ao passado que morreu antes de existir.

E juntas a caveira e a rã gritam:

“NÃO!

O sal daqui é a morte. É só o que levará os teus olhos”.

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Fé Cego

Sebastião nasceu cego e vive como cego há 48 anos. Nunca viu a luz, mas sonha com ela desde o dia em que abriu os olhos. Sebastião é pobre e mora com seu pai, mãe e irmã num sitiozinho afastado da cidade; uns 50 minutos de caminhada por uma estrada sinuosa.

Sebastião ajudava a sua família em tudo o que podia, tinha o sítio desenhado em sua cabeça, guiava-se pelo costume. Ainda criança, aprendia com tudo o que a visão o negava, mas era o som que mais lhe dava direção. Quando ia para a cidade com sua irmã, Sebastião caminhava com a sua bengalinha por toda parte, lentamente, rua a rua, passo a passo. Nunca arrumou trabalho: mais compensava o dinheirinho do sítio do que se matar de ser explorado. Gostava do cheiro da terra, do mato, e de ter as raízes de mandioca entre os dedos.

Aos vinte anos, sua irmã arrumou trabalho na cidade como empregada, e ganhava mal, apenas para ela mesma. Sem a irmã, Sebastião ficou mais tempo sozinho, o pai e a mãe estavam sempre ocupados vendendo o que a pouca terra lhes devolvia.

Às vezes ficava tão só que dizia ouvir vozes, como a do vento, que conversava com Sebastião quando ele passeava pelo mundo. Gostava quando o vento ressoava nas folhas das árvores, ou reverberava pelas dobras da casa. Para Sebastião, as vozes mais lindas eram as dos pássaros, canções que ele dava nome e cor. A voz dos cães eram vidros, latidos afiados que cortavam pelo mundo, e que à noite brilhavam. A voz humana que ele mais amava era a risada da irmã, tiroteio de ar frouxo, riso escapulido e riam juntos.

Na cidade, sua irmã passou a ir à igreja e, quando possível, levava Sebastião. Lá ele aprendeu que Deus podia tudo, e que se tivesse fé, Jesus o daria novos olhos e ele veria o céu.

Vinte e oito anos depois, o cego ainda acreditava que Jesus dos céus lhe abriria os olhos e o faria ver o Sol, tinha fé que ele, um dia, fugiria das trevas.

Algumas vezes ele ia sozinho para a igreja, caminhava pela estrada com a sua bengalinha e nas curvas parava, esperava passar um carro para saber onde pisar com segurança.

Andou a metade do caminho e parou, não passava mais carro, até o vento parou, o silêncio deixou tudo mais pesado. Sebastião teve medo. Ouviu um ruído e seu coração disparou, e ele temeu como nunca antes. Sons novos, estranhos, vindos de uma árvore bem à sua frente, ele ficou paralisado. Uma brisa longe desafinou nas folhas das árvores e o vento chegou dançando, sussurrando-lhe um carinho no rosto, aquecendo o suor frio que lhe escorria pela pele, trazendo a paz.

Mais calmo, deu um pequeno passo, e sem motivo, ergueu a cabeça, um líquido pegajoso caiu em seu rosto lhe queimando a face, caiu de joelhos e gritou de dor esfregando as mãos ao rosto. Devagar foi se acalmando, respirando e voltou, mas não ao normal. Encheu os pulmões de ar e gritou: “GLORIA A DEUS!! GLORIA A DEUS NOSSO SINHÔ!! EU TÔ VENDO!! EU POSSO VÊ!! EU POSSO TE VÊ, MEU DEUS!!”. E com seus novos olhos contemplou suas mãos, calejadas, machucadas, lindas. E olhou para as árvores e para a terra e finalmente ergueu os olhos e olhou para o céu. “Meu Deus!! Meu Deus desse céu tão lindo!! Meu Deus do céu que é que é isso?” Sebastião olhava atônito para o céu, e uma forma estranha pairava no ar. “Vixxi!! Será que é um disco voador, é!? Rapaz, é um disco voador, veja você…” Ainda atônito, um ruído vindo da árvore o chamou a atenção. “Eita que num é o ET?! Bichim como tu é fei!” Um ser alaranjado muito estranho parava no alto da árvore. Começou a fazer sons estranhos, ruídos, e aos poucos foi saindo: “Vixxi, você, veja, rapaz”. Sebastião se admirava: “Rapaz, que ET esperto, tá me aprendendo a minha língua!” O ser desceu da árvore e tocou em Sebastião.

– Você era cego. – Se admirou o ET.

– Era sim sinhô, e Deus mandou você. Que foi que você fez? Perguntou Sebastião.

– Isso. – E o ET cuspiu novamente no rosto de Sebastião.

– Aaaaiiiiii, caramba, pô! Quando Deus manda, não precisa dar a paulada duas vezes, isso arde muito. E se curvou com a ardência, limpando o rosto.

– Por que você era cego? Perguntou o ET.

– Ora! Por que acontece. As coisas acontecem. É a vida. Mas graças a Deus eu agora posso ver – Respondeu sorrindo Sebastião.

– Quem é Deus? Indagou o ET.

– Rapaz!? Você veio lá dos confins das estrelas do lado de lá do universo e num conhece Deus não?! Deus é o ser mais bondoso, mais maravilhoso, mais bunito, mais lindo, mais cheio de graça, mais cheroso, mais quente, mais, mais tudo, é o amor, é a paz, é a alegria, é a sorte grande, é a vida, é Deus, ET de Deus!

– E como é que eu não conheço Deus?

– Não importa. Eu falo dEle pra você. Deus manda eu pregar pra toda a criatura. E se Ele mandou você pra curar a minha cegueira era pra – VOCÊ – poder ver Deus.

E Sebastião ficou horas, dias, semanas explicando e contando sobre Deus para o ET.

Até que um dia ele partiu. E Sebastião lhe deu presentes e disse:

– Oi, laranjinha, manda seus amigos ETs aqui que eu tenho muito o que falar pra Eles! Vá com Deus!!

E o ET se foi.

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