Conto pichado numa estação de trem abandonada

O amor te arrastou até aqui.

Ele te manteve viva por todos esses dias, por todo esse tempo.

Beijava-lhe a boca aos domingos pela manhã e à noite amava-te sem culpa ou perdão.

Mas numa segunda-feira ele te abandonou.

Você chorou por dias e dias seguidos.

E num sábado à tarde você o viu, de mãos dadas com uma criança, cantarolando uma mentira qualquer. Ele estava tão bonito, parecia tão feliz.

Mas a verdade, dessas que ficam escritas em livros de autoajuda, é que ele jamais te esqueceu.

E olhando de perto, bem de perto, você era aquela criança. E ele era tudo que você sempre sonhou.

Você então foi até ele, resgatou a criança de seus braços, esbofeteou lhe a fuça e seguiu com a sua vida.

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Antes de tudo. Depois do fim.

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Antes de tudo.

Quando não havia nem a luz nem a escuridão, Ele já me amava.

Ele me amou com tudo o que É e, mesmo eu sendo como sou, e tendo feito o que fiz, Ele ainda me ama.

 

Ele foi profetizado e eu o persegui para tirar-lhe a vida.

Ele foi anunciado e eu não acreditei.

Ele nasceu e eu o desamparei num celeiro.

Ele transformou água em vinho no meu casamento e eu me embebedei.

Ele me falou sobre o reino dos céus e eu o chamei de blasfemador.

Ele me chamou, pecador que sou, para o arrependimento e eu fiz conselho para matá-lo.

Ele pregou sobre o paraíso e eu pedi por sinais.

Ele se revelou a mim como o filho do Deus vivo e eu o questionei com malícia.

Ele curou minhas enfermidades e eu me escandalizei.

Ele expulsou o demônio do meu filho e eu o vendi por 30 moedas.

Ele ressuscitou o meu irmão e eu o prendi como um assaltante.

Ele acalmou a tempestade que me aterrorizava e eu o traí.

Ele curou a minha cegueira e eu cuspi em seu rosto.

Ele me curou da lepra e eu o esbofeteei.

Ele me livrou do apedrejamento e eu lhe dei murros.

Ele me amou. Ele me amou. Ele me amou. E eu o neguei. E eu o neguei. E eu o neguei.

Ele me deu uma família maravilhosa e eu levantei falso testemunho contra Ele.

Ele voltou por mim quando eu estava perdido e eu pedi que soltassem Barrabás.

Ele me deu a paz na minha hora mais difícil e eu gritei para que o crucificassem.

Ele matou a minha fome e eu o açoitei.

Ele livrou a minha vida de um acidente e eu coloquei uma coroa de espinhos em sua cabeça.

Ele me deu o perdão e eu o crucifiquei.

Ele me deu água da vida, pura e perfeita, e eu lhe dei vinagre.

Ele ressuscitou a minha filha e curou o meu filho e eu o insultei na cruz.

Ele me ensinou tudo sobre a vida, eu fiz tudo errado e zombei Dele.

 

Eu merecia o inferno e Ele ressuscitou, me perdoou, e me deu o paraíso.

E mesmo depois do último pôr do Sol.

Depois do fim de tudo. Ele vai continuar me amando.

 

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Este Mundo

Era a primeira entrevista de emprego depois de 14 meses parado. Um misto de euforia, medo e esperança lhe faziam tremer.

– Ainda bem que meu irmão me emprestou o sapato novo dele. E seu pai a calça. Nunca gostei de calças sociais. – Falou enquanto arrumava o cinto.

– Está vendo? As coisas estão acontecendo, eu sabia que Deus daria um jeito. –  Disse sua esposa.

– Pelo menos não precisei pedir a camisa emprestada. E abotoou o último botão.

– Ainda bem que esta ficou boa. Mas o sapato está largo.

– Coloque mais uma meia, amor. – Disse a mulher, olhando para o marido.

Ele colocou.

– Ainda não está bom. – Falou, batendo o pé no chão.

– Mas acho que já dá. Dê uns passos.

Ele andou um pouco pelo quarto. A esposa olhou e deu um sorrisinho.

– Só não vou poder sair correndo. – Ele afirmou com um sorriso largo.

– E você planeja correr de quem? – Ela indagou.

– Nunca se sabe… De um cachorro, da polícia, mulheres… – E soltou um sorriso largo.

– Mulheres, mostre a carteira pra elas que elas vão correr é de você! – E olhou séria para ele.

– Também não precisa humilhar, né?!

A mulher o olhou, de alto a baixo, foi até ele e lhe deu um abraço. Tudo vai melhorar, me desculpe. Estou com você, você sabe.

Os dois sentiram vontade de chorar, mas não havia mais lágrimas, nem dinheiro, nem autoestima, só um pouquinho de amor e de esperança, mais esperança que amor.

Depois de quase duas horas a recepcionista chamou:

– Francisco Souza, sala quatro, por favor.

Ele agradeceu, caminhou tremendo até a sala, a moça do RH o esperava, sorriu para ele com seu currículo na mão.

Depois de dez minutos de conversa ela o olhou nos olhos e disse, como alguém que atira numa pessoa de mãos amarradas e que lhe olha:

– Me desculpe Francisco, mas o senhor não se enquadra nas necessidades da nossa empresa. Obrigado por ter vindo.

– Mas… – Tentou argumentar e ouviu:

– A saída é por ali, obrigado.

Foi difícil sair da cadeira, não era só o mundo que estava em suas costas, era o fracasso, era o olhar da mulher lhe chamando de inútil, era a dor do estomago vazio, eram as contas todas, era o mundo dele pesado e oco. Quis gritar, voltar a sentar a mão na cara da psicóloga pela grosseria, por não poder falar, por não poder nem chorar. Saiu lentamente olhando os malditos sapatos largos, que nem eram dele.

Passou em frente a um mercado, tinha uns poucos trocados no bolso. Melhor comer alguma coisa, um pão pelo menos. Entrou e olhou as tantas coisas das prateleiras, tanta coisa boa, queria encher um carrinho e levar pra casa. Despejar na mulher uma caixa de bombons e lhe amar de verdade, como ela não deixava há meses e ele não conseguia há semanas.

Num dos corredores um senhor chamava a atenção de um rapaz, uma bronca feia, com dedo na cara e voz de bandido. Ele passou e olhou, o rapaz ergueu os olhos e seus olhares se cruzaram. Preferia estar tomando uma bronca dessas e estar trabalhando do que como agora. Com dinheiro para um pão apenas, um pão sabor fracasso. Pensou, seguindo para a área dos pães. Pediu um pão francês dos menores e uma água que custasse menos de um real, para que pudesse matar a fome, a sede e não voltar a pé para a casa.

Sem querer esbarrou no rapaz que tomou aquela bronca, e estava abaixado arrumando uns refrescos.

– Qual foi o bacana?! – Disse erguendo a voz e o empurrando. – Acha que só porque está todo bem vestido, de sapatinho brilhante pode ir pisando nos outros? Eu sou pobre mas sou gente, você não tem o direito de fazer isso não!! Tá pensado o quê?!!

Ele não sabia o que fazer, pensou ser algum tipo de brincadeira do rapaz, ele nem sentiu o esbarrão, quase não o tocou. Olhava pasmo.

– Que foi?! – Continuou agressivo, armando um soco. – Acha que eu não tenho coragem de quebrar a sua cara?!

Sentiu um fogo lhe subir no peito, olhou no olho daquele idiota e fechou a mão. Melhor, era só imaginar o rosto da psicóloga e descontar tudo neste bosta, melhor ainda, ir para a cadeia e imaginar a cara da mulher, mandar tudo pelos ares, não era muito mesmo, só migalhas de uma vida, uma camisa que o enfeitava.

Seguiu-se um silêncio, uns segundos apenas, respirou fundo. Ele ouviu uma voz, que não era a dele, lhe dizer “Não”. Sentiu calma, mais silêncio e ele desfez o soco, o rapaz não.

– Olha me desculpe, eu não o vi, não quis ofender você, por favor, me perdoe. – Ele falou com a voz trêmula, como alguém que devolve aquilo que não roubou.

– Não é só porque eu tenho esse trabalho humilde, que gente como o senhor pode fazer isso, faz que a gente é invisível, pisa na gente. – O rapaz um pouco mais calmo, de mãos abertas.

– Você está muito enganado, não sabe nada. Eu…

– Olha aí, já tá me chamando de ignorante, bradou interrompendo.

Qual o problema aqui? O homem que havia dado a bronca no rapaz perguntava.

– É… Seu Osmar. Nada não. Eu esbarrei nesse moço e estava me desculpando com ele. O rapaz era outro. – A voz cheia de medo.

– Felipe, eu sabia que você iria aprontar. Me desculpe senhor, eu vou cuidar deste incompetente, já para o RH. – Apontou para o rapaz que arregalou os olhos. Seu medo cheirava no ar.

– Por favor, na faça isso, eu esbarrei neste moço sem querer e ele muito humildemente se desculpou comigo.

– Ok, dessa vez passa, Felipe, mas estou de olho em você.

O rapaz se virou para a prateleira e começou a arrumar as mercadorias. E ele ficou lá parado, segurando seu pão e sua água, deu uma volta no mercado, meio sem rumo, pagou e foi embora, bebeu a água e sentiu o sal de suas lágrimas temperar o pão.

 

Rêmulo Vaney Carrozzi.

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Homem não Chora

No fim de mais um dia de trabalho, ele guardou as suas ferramentas e olhou para o céu. Suas mãos doíam, seus olhos doíam, o corpo todo sofria. Respirou fundo. Teve vontade de chorar. Suas narinas arderam, seus olhos se encheram de água. O que o impedia de chorar? Por que não chorar? Sentar no chão e deixar as lágrimas rolar. Lavar a alma, deixar todo o peso do mundo sair, pelos olhos, pelos poros, pela dor. Não. Melhor não chorar. Os homens não choram. Talvez os humildes e os valentes chorem. Ele era só um homem.

Foi para casa. Beijou os filhos, a mulher e jantou sem dizer palavra alguma. E ainda carregava no peito uma pedra. Tudo estava errado. E o corpo doía ainda mais. Até respirar estava difícil.

– Você está quieto amor, o que foi? – Perguntou a mulher.

– Nada.

O silêncio trazia dor, mas ajudava a carregar a pedra.

Assistiu televisão e tudo estava disforme. Num comercial de automóveis, o mundo era perfeito. Mas o carro dele era como o mundo: defeituoso. Cansado, desligou a TV. A família o olhou, ele a ligou de volta. Silêncio. Ele saiu da sala. A mulher o olhou, estranhando tudo, pensou em se levantar, mas era a hora da novela.

Do lado de fora da casa, ele olhou novamente para o céu.

A filha menor trouxe a Bíblia.

– Toma Papai. – E voltou pra dentro.

Ele mudo, pasmo. Abriu num livro qualquer:

“Levanta-te, vai a grande cidade de Nínive e clama contra ela, por que a sua malícia subiu até mim”.

Não satisfeito fechou e abriu de novo:

“Jesus chorou”.

Deus existe? Deus existe. Na rua, um carro passou fazendo barulho, muito ruído para pouco motor. O sol, o céu, o amor, o sexo, minha dor, minha mulher, meus filhos, essa pedra no meu peito e essa água nos meus olhos… Respirou e não conseguiu mais segurar. Chorou. Chorou, chorou e chorou. Chorou tanto que virou criança. Homem não chora. Chora. Homem tem que chorar. Se até Jesus chorou, se o melhor homem que aqui pisou chorou, ele tinha que chorar. Ele tinha que ir para a cruz junto com o Cristo. Ele e aquele monte de pecados. Melhor chorar. Chorou até a pedra se dissolver. Até respirar livremente. A dor agora era boa. Dor de luta vencida. Dor de ferida curada. Dor de um pecado perdoado. Ajoelhou-se e só agradeceu.

– Obrigado, Senhor, pela Tua maravilhosa graça. Eu só merecia a dor que eu carregava pelo mal que fiz. Mas a Tua mão e o Teu amor me salvam.

E cantarolou um louvorzinho e chorou mais uma vez. Agora um choro bom, com o peito já lavado, com a alma leve. O cachorro chegou perto, pedindo um carinho.

– Onde você estava seu porcaria? Dormindo, não é?

Brincou com o bicho e, antes de entrar em casa, olhou mais uma vez para o céu. Uma estrela cadente despencou riscando a noite. Claro que Deus existe. Sorriu, sentou-se no sofá, pegou a filha menor, beijou-lhe e perguntou:

 – Não passando nenhum filme bom nessa TV, não?

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Brisa

Um dia, um menino quis falar com Deus.

Subiu na mais alta árvore da mais alta montanha e gritou:

“Deus o Senhor está me ouvindo?!”

Só ouviu o vento, mas o vento cantava tão bonito! Um canto doce, leve, suave.

“Deus, o Senhor está falando pelo vento ou com o vento? Porque eu não estou entendendo nada.”

O vento ficou mais e mais forte, chacoalhou a árvore toda, quase tremeu o chão. O menino se assustou, quase caiu.

“Deus, o Senhor está ficando bravo? Eu posso descer daqui e não fazer mais perguntas desse tipo.”

Então o vento parou e as folhas, todas elas, dormiram. Até o menino sentiu sono.

“Deus, eu só queria Te agradecer pelo azul do céu, pela água doce e pela brisa fresca.”

E um raio de sol rompeu umas poucas nuvens brancas.

.

Muitos anos depois, um velhinho subiu a primeira montanha que conseguiu e se apoiou numa árvore.

“Senhor, eu só queira te agradecer pela tempestade, pelo sal das lágrimas e pelo teu perdão.”

E então choveu.

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Espinhos

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Um senhor de pele enrugada e dias fartos caminhava pelo seu simples jardim quando ouviu as lágrimas de uma de suas netinhas. Ela chorava desconsoladamente, escondida atrás de algumas rosas vermelhas. O senhor a pegou no colo e a carregou até um banco.

– Que foi minha flor? Que acontece que você chora tão tristemente? – Ele enxugou as lágrimas da menina e a apertou contra o peito.

– Vovô, eu acho que o mundo está todo errado. Eu acho que Deus tinha que mudar tudo. Eu não gosto do jeito que está. – Ela tentou explicar.

– E é por isso que você chora? – E enxugou as últimas lágrimas.

A menina respirou fundo e disse: “Não”. Tomando fôlego.

– Eu choro por que eu não entendo o amor. Eu não entendo a minha mãe e o meu pai. Eles brigam o tempo todo. Se xingam, se machucam, se afastam, um faz o outro sofrer.

O senhor sentiu um peso. Uma dor no peito. Um aperto que fez o ar queimar em seus pulmões.

Suas mãos idosas e calejadas acariciaram os finos e perfumados cabelos da pequenina.

– Minha linda, minha netinha que mais parece uma delicada flor. Eu acho que a culpa é minha. Talvez eu tenha feito algo de errado. Eu acho que em algum momento eu não fui o pai que a sua mãe precisava que eu fosse. Eu devo ter falhado. Você pode me perdoar?

– Mas vovô, a mamãe já é grande e o papai também. Eles deviam saber que o amor é simples. Que o amor é dar e receber. O amor não é esperar em troca. Olha, tá vendo essa formiguinha? Olha como ela chega até a rosa. A rosa não a impede de chegar, de precisar da rosa, de amar a rosa.

O senhor observa na rosa ao seu lado a formiga que sobe pelo caule até as pétalas da flor.

– Meu amor. Olhe bem. A formiga tem que se desviar do quê?

– De nada. – Respondeu rápido a netinha.

– Tem certeza? Perguntou o velhinho.

– Dos espinhos vovô. Dos espinhos. As rosas têm espinhos. Por que as rosas têm espinhos? Perguntou confusa, a menininha.

– Tente pegar a rosa minha flor. – Indicou o senhor.

Quando a menina levou a mão a rosa o velhinho disse alto: Cuidado! Os espinhos machucam.

A menina tentou pegar de um lado, tentou pegar de outro e quando achou que podia puxar, furou o dedinho. Seu avô a consolou e chupou a ferida até o sangue parar.

– Tá doendo vovô.

– Vai passar querida. A dor vai passar.

– Vovô!! – A menina deu um pulo. Sentou rapidamente no banco saindo do colo de seu avô. – Eu tenho que avisar a mamãe e o papai dos espinhos. – E saiu correndo. Deu uns passos e voltou. – Mas vovô, o senhor me avisou dos espinhos e mesmo assim eu machuquei as minhas mãos.

– Eu acho que os seus pais sabiam dos espinhos. Mesmo sem eu ter avisado para eles.

– Foi ai que o senhor errou? Não ter mostrado os espinhos?

– Pode ser meu anjo, mas os espinhos se escondem, eles sempre estão nas rosas.

– Então não tem jeito. Meus pais sempre vão se machucar?

– Tem um jeito sim meu amor.

– Como vovô?

– Perdoar os espinhos um do outro, até que uma hora eles não doam mais.

– Huummm!!! Que estranho isso!! Que difícil!! Espinhos mágicos que se escondem. Machucam e depois não doem mais.

– É parecido com o amor.

– Mas o amor é assim tão estranho? – Perguntou sem entender a netinha.

– Depende do cravo, da rosa e do tamanho do espinho.

– Nossa! Mas talvez a mamãe e o papai não saibam disso. Vou correndo avisar.

E saiu correndo em direção à mãe e ao pai.

O velhinho olhou para as marcas nas mãos, e dessa vez era ele quem chorava.

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Osrremos

Remava triste e solitário o meu barquinho. Eu seguia num longo rio. Às vezes, as suas margens eram tão próximas que eu quase ficava encalhado; outras, as margens eram tão distantes que eu podia jurar que remava num oceano. E ainda, algumas vezes, o rio ficava tão curto e seco que eu tinha que puxar o meu barco em poças de lama. Até que o rio crescia, bravo, com cascatas e pedras e uma forte e perigosa correnteza.

Muitas vezes, eu perdia os remos e usava minhas próprias mãos para seguir em frente. Era cansativo demais. Mas, com as chuvas e os ventos, novos remos surgiam e melhores que os anteriores. Até que vinha uma tempestade e virava o barco. Era um desespero! Mas, como toda tempestade passa, eu desvirava o barco e seguia em frente.

Às vezes eu ficava cansado e deixava o rio me levar; nem sempre era bom. Eu dormia e acordava com o barco preso numa ilhota. Isso quando ele não quebrava e eu tinha que consertá-lo, colocar meu barquinho de volta na correnteza e remar.

Engraçado; porque eu via poucos barcos, pouca gente e eu sempre conhecia a todos. Eu costumava amar aquelas pessoas.

Um dia o barco parou. A correnteza seguia, mas meu barco não, nem se mexia ou balançava. Eu me lembro que, naquele dia, eu convidei Jesus para entrar no barco comigo. Ele ficou feliz pelo meu convite. Eu lhe entreguei os remos e ele foi o capitão de tudo. E o estranho é que o rio seguiu manso, firme. Uma tempestade fez o maior estardalhaço, mas com um sorriso e um gesto de Jesus, ela se aquietou. E fomos tranqüilos até um porto.

Eu lhe perguntei: – Senhor, por que a demora para aparecer no meu barco?

E Ele me respondeu: – Ora, eu sempre estive com você, só que do lado de fora do barco, esperando um convite seu.

Rêmulo Vaney Carrozzi

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Meu Defensor

O sol, tímido, desponta colorindo o céu. Caminho até a beira da água, uma imensidão de esplendor e beleza. O sol, agora um pouco mais alto, sai do horizonte iluminando e dando glória à criação de Deus.

Uma pequena onda um pouco mais abusada molha meus pés, eu estranho a água estar doce e morna. Ergo meus olhos e sinto uma emoção inexplicável. Olho para o horizonte e vejo um ponto entre a água e o sol. O ponto cresce e se aproxima. Sinto em minha alma que é Ele. Uma paz incompreensível me domina. Mas quando O vejo fico eufórico. Sim, é Jesus!

Grito com toda a força. Ele estende os braços e me chama. Corro sobre a água até Ele, ela é firme, apesar da sensação de que vou afundar ou escorregar. Olho pra Jesus e Ele sorri.

Eu já não corria mais, eu flutuava. Chegando perto, tentei parar, mas deslizei e fui com tudo pra cima dEle, espirrando água. Jesus, com os braços abertos, me segurou e, rindo muito, me deu um forte abraço. Eu só conseguia falar: “Senhor, Senhor”! Ele tocou meu rosto com as duas mãos, olhou nos meus olhos e disse: “Meu filho”. E eu fiquei repetindo “Obrigado, obrigado, obrigado…” Ele me soltou e falou: “Olha só que legal”. Correu e deslizou, depois mergulhou, e apareceu embaixo da água, do meu lado, esticou a mão e pediu a minha ajuda. Ele saiu da água e praticamente mandou: “Vai, é muito divertido”. Corri e dessa vez me joguei de peixinho e, quando estava quase sem velocidade, mergulhei. Fiquei um pouco embaixo da água olhando os peixes. Ele apareceu trazido por um golfinho, me pegou pela mão e nadamos um pouco, íamos rápido até que o golfinho saltou da água, nos deixou e mergulhou.

Jesus fez um gesto com os pés e apareceu uma bola. Duas traves enormes, transparentes apareceram. Eu “roubei” a bola, saí correndo e fui em direção ao gol, eufórico e rindo muito, chutei. Ia ser um golaço quando uma baleia saiu da água e defendeu o gol, passando de cabeça pra Jesus, que, gargalhando matou a bola no peito e me chamou. Fui até Ele, que me driblou; eu nem vi a bola, e Ele chutou pro gol. A bola estava indo pra fora quando uma foca apareceu e, de focinho, fez um golaço. Eu perguntei se isso podia. Jesus com um enorme sorriso fez um gesto como se nada de mais tivesse acontecido.

A bola apareceu no meu pé e eu, meio desconfiado, chutei, esperando que uma lula gigante, ou um tubarão jogassem no meu time. Mas ela perdeu força e nada aconteceu, ficou parada. Olhei pra Jesus que sorriu e saiu correndo para a bola. Disparei, mas não deu tempo. Jesus me driblou de novo, e dessa vez eu vi a bola, mas só fiquei vendo mesmo, porque Jesus bateu o pé, fez uma onda e chutou a bola, que foi sendo levada em sua crista, e quanto mais chegava perto do gol, mais crescia até que a onda explodiu no gol, num espetáculo incrível de água, som e vida. A bola estava dentro do gol e Jesus sorria pra mim.

Perguntei quanto estava. E Ele respondeu:

 – Dois a zero pra você.

– Como assim, pra mim? Eu não fiz nenhum gol. – Perguntei, sabendo da bondade dEle, mas sem entender nada.

– Você não esperou que EU delimitasse os gols, simplesmente pegou a bola e correu, ia fazer o maior gol contra. EU defendi e fiz os gols pra você. – Disse o meu Senhor, me sorrindo.

Eu O abracei e chorei e sorri e O glorifiquei. Ele me levou até a margem, e disse que sempre vai estar comigo. Caminhou sobre as águas até o horizonte se misturar com o céu. Tentei ir atrás dEle, mas afundei na água e quase me afoguei. E o sol foi deixando o dia, sumindo no horizonte, colorindo o presente de Deus para nós. Sentei na areia e dei glória a Deus, por Seu amor e por Seu sacrifício na cruz, cruz que era pra ser minha e Ele a recebeu por amor, salvando toda a criação.

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O Caminho Certo

 

Pedro acabara de encher os cantis de água e chamou os outros onze.

– Estamos prontos, vamos. – E foram até Jesus.

– Senhor, já podemos seguir, estamos prontos.

Mas Jesus só o olhou e sorriu.

 – Ainda não, Pedro. Vamos esperar um pouco mais.

Pedro olhou para o Cristo e tentou argumentar.

– Mestre, uma multidão nos segue, não podemos ficar parados aqui.

– Podemos sim, meu amigo, e vamos ficar. – E novamente sorriu para Pedro.

.

– Tia, não chores.

O sobrinho mais velho de uma viúva tentava lhe dar consolo. Mas era inútil. Ela chorava muito.

– Meu filho! Meu único filho! Meu Deus, por quê? Meu filho! Meu filho!

O cortejo se preparava para sair, iam levar o corpo para o sepultamento. Uma multidão acompanhava.

– Vamos por aqui. – Indicou a mulher.

– Tia, esse é o caminho mais longo, difícil, não é o caminho certo.

– Não, vamos por aqui. Meu filho amava esse caminho. E seguiu pelo caminho guiando o cortejo.

.

Pedro ficou um tempo em pé, impaciente. Andou pra lá e pra cá, até que finalmente sentou. E quando ainda estava se ajeitando, Tiago foi até ele.

– Vamos Pedro, Jesus já está indo.

Pedro olhou para o chão, soltando o resto de ar que tinha nos pulmões.

– Me ajuda aqui, Tiago. – Mas Tiago já estava longe. Levantou-se, bateu a poeira e acelerou seus passos.

Jesus ia na frente, conversando com seus amigos, mostrando o caminho. Pedro chegou junto aos doze. Estavam cansados. O caminho era pedregoso, com subidas íngremes, descidas perigosas e era longo. Pedro Exclamou:

– Senhor, esse caminho é cansativo, já tomei dois escorregões, tropiquei uma vez e vi gente caindo. Agora mesmo, se André não tivesse se agarrado em mim teria se esfolado todo. Falou e olhou para Jesus que com um olhar de compreensão disse: – Mas é o caminho certo, Pedro.

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O cortejo seguia. A viúva chorava muito. Todos andavam lentamente, com cuidado. A mulher chegou junto da esquife, tocou-a e chorou e chorou e chorou. Os homens que carregavam o corpo pararam, todos então pararam também. A mulher chorava e os que estavam perto também choravam e tentavam consolá-la, mas nada a consolava.

– Meu filho, meu único tesouro! O que vai ser de mim? Meu Deus! Meu filho…!

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Jesus falou a seus amigos que ia parar um pouco. Todos então pararam. Pedro sentou-se logo de imediato, não queria ser pego de surpresa novamente. Jesus ficou descansando e olhando o céu, vieram lhe trazer água. Ele agradeceu, olhou para o caminho a frente e lágrimas escorreram de seus olhos. Felipe veio até Pedro e disse:

– Vá até o Mestre e diga que temos que seguir. Já estamos aqui faz tempo.

– Eu não, vá você! Ele sempre sabe o tempo certo de tudo, a hora que Ele for eu vou.

João fez um sinal. Jesus já estava caminhando.

Pedro olhou para Felipe e estendeu a mão. Felipe sorriu e tirou o amigo do chão. E Pedro disse a Felipe:

 – É, andar com Jesus não é fácil. – E Felipe passando o braço sobre seus ombros, respondeu:

 – Fácil não é, mas é muito compensador. E imagina se não O tivéssemos. – E Pedro disse:

 – Vamos, Naim está próxima. E sem Ele estaríamos perdidos no deserto.

.

O cortejo chegou à porta da cidade, uma multidão o seguia. E vindo em direção à viúva uma quantidade enorme de pessoas. A mulher, ainda chorando, viu um homem sair do meio daquela multidão e caminhar até ela. Ele a viu chorando, tocou em seu rosto, enxugou as suas lágrimas e docemente disse:

 – Não Chores!

Ela o olhou e disse: – Meu Deus, o meu filho…

Jesus parou o esquife e com autoridade falou:

 – Jovem, a ti te digo: Levanta-te.

O jovem assentou-se e começou a falar. Jesus o pegou pela mão e o levou até sua mãe. Que, estupefata, chorava, abraçava e beijava seu filho. As multidões glorificaram a Deus. Pedro olhou para o céu e depois para Jesus, que chorava olhando para a mulher. Jesus enxugou as próprias lágrimas e olhou para Pedro. Do rosto de Pedro escorreram algumas lágrimas. Jesus as viu e as enxugou. E Pedro disse: Meu Senhor e meu Mestre, meu Caminho, minha verdade e minha Vida.

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Um ano nove meses e dezesseis dias

O deserto.

Com a dor, o deserto te invade, tudo é o deserto.

Fica-se sozinho.

A morte e o abandono te enterram.

A dor é tão forte que se deseja o deserto, só ele conforta.

Fica-se tão só que aqueles que o amam te procuram e não te acham.

E lá não há nada.

Só o sol devastador de dia e o suplício do frio à noite.

Os dias se arrastam no deserto.

Bebe-se as próprias lágrimas.

A dor não diminui, acostuma-se com ela.

O sol dilacera e consome a pele e espera-se pela noite e a desolação do frio.

Lentamente passa-se a andar pelo deserto, cobras e escorpiões te fazem companhia.

Procura-se, sem querer encontrar, uma sombra que não existe.

Vê-se miragens de pessoas amadas, amigos que não te acham.

O dia todo, caminha-se sob o sol.

Não há descanso, só ruínas.

À noite, cobre-se com pedras, que te machucam mais que o frio.

A dor se cristaliza e o sangue escorre mais lento, mas a ferida não fecha.

Sente-se sede, mas não há água, nunca houve.

Encontra-se uma caverna.

Melhor ela, escura, abafada, fria como o túmulo que tanta dor causa.

Fica-se nela.

Lá fora o deserto.

A dor faz pensar.

Ouve-se gritos do teu nome.

Os olhos se acostumam com a escuridão.

As trevas confortam e é possível ver os detalhes do fundo da caverna.

Nega-se o outro lado.

A ferida ainda aberta não sangra mais, mas dói como antes.

A sede aumenta, lágrimas amargas demais.

Quase se tem fome.

Olha-se para a luz e a vista dói.

Tem-se a sensação de vultos, sombras que te procuram.

Vê-se uma mão.

Alguém grita o teu nome.

Nada.

A dor é sua amiga.

As lembranças são o que lhe dá forças.

A vida é cruel demais.

O amor é frágil e poderoso e, até que ele entre na caverna, a luz fica de fora.

Sonha-se que está caindo, e o teto da caverna é baixo.

O sofrimento cede, a dor não.

A luz te chama, saudades de caminhar pelo deserto.

Vai-se até a entrada, os olhos doem, um cheiro incomoda, melhor sair da caverna e enfrentar o deserto.

Anda-se com vigor, corre-se para fora.

A ferida não sangra, mas fica aberta, a carne viva, sem cicatrizar.

Acostuma-se com a mesma dor.

Uma nuvem te protege.

O sol sente vergonha.

Avista-se uma árvore, talvez seja o fim do deserto, talvez só mais uma miragem.

Alguém que você ama te oferece água e você finalmente aceita.

As nuvens aumentam.

Chove.

O calor se abranda.

O verde nasce tímido.

Chove.

Lobos aparecem e te seguem.

Alguém te dá à mão.

Um sorriso se rompe.

A dor ainda é a mesma.

Chove.

Pequenos arbustos e minúsculas flores se revelam.

O deserto acaba, a dor não.

Um bosque te acolhe e, mesmo com a dor, espera-se pela primavera.

 

(Título mutante, muda conforme a data contada do dia mais infeliz da minha vida)

 

Rêmulo Vaney Carrozzi

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